Eu tinha 16 anos quando entrei na faculdade de medicina. O ano era 1985 e por causa daquele vestibular em Londrina acabei tendo que conviver diuturnamente com o sofrimento, a doença e a morte desde então.
Não há nada mais acachapante para quem tem alguma inclinação para a espiritualidade ou para uma reflexão existencial do que esse contato íntimo com as vicissitudes humanas. Somente talvez a convivência com flagelos maiores, que ultrapassam o âmbito do indivíduo e sua família, pode ser mais gritante do que a vida dentro de um hospital. Estou pensando nas guerras, na fome que assola as populações africanas, nos campos de refugiados, nos guetos do nazismo e em coisas odiosas como o apartheid. Para essas não tenho grandeza de espírito necessária. Admiro quem dedica sua vida ao combate direto, in loco, a esses males.
De qualquer modo, a percepção imediata do sofrimento dos outros funciona como um balde de água fria sobre qualquer sonho de mundo feliz que um adolescente, como eu era ao percorrer pela primeira vez os corredores da sala de anatomia, possa alimentar. Apesar disso, entre optar por uma atitude fria e cínica diante da dor ou procurar desenvolver algum nível de contato com o sujeito que sofre; acabei escolhendo o segundo caminho.
Depois de tanto tempo debruçado sobre a literatura médica, conclui que por mais que estude sempre fica algo faltando. No máximo, quando alcanço o estado da arte em alguma moléstia específica, o que acontece é que compartilho a ignorância dos maiores cientistas do mundo. No quesito resolução de sofrimento, a medicina deixa ainda muito a desejar.
Por incrível que pareça, também não há resposta satisfatória na religião. Criam-se justificativas, promessas e apoio espiritual por meio de crenças em compensações posteriores, mas o sofrimento do aqui e agora permanece. Se houvesse um exorcismo realmente eficaz, por padre, pastor ou ministro - algo que realmente extirpasse a doença, os hospitais estariam com seus dias contados. Do mesmo modo, não há atos mágicos, manipulação de Chi ou meditação que repare algo concreto como um fígado cirrótico. Se é falta de merecimento, havemos de perguntar o que merecem então os doentes.
Ciência e religião podem nos ensinar a encontrar saúde no corpo, na mente e no espírito, mas apenas ANTES da patologia se apresentar. Certamente há curas milagrosas reinvidicadas pelas duas artes, mas são assim, milagres em condição de exceção, como são todos os milagres.
No final das contas, fazendo tudo ao alcance dos conhecimentos disponíveis oriundos de qualquer lado, o que sobra diante de nós é a dor e o sofrimento do ser humano vivo e físico, como nós mesmos. E para isso só há um remédio, aquele que está justamente no plano humano da existência. Para esse sofrimento, a cura é a compaixão, a solidariedade, a empatia possível apenas pelo contato caloroso de alguém que se identifique realmente com o outro.
É verdade que os médicos carregam sobre os ombros o peso da responsabilidade do diagnóstico correto, da prescrição inequívoca e da cirurgia precisa. Até mesmo nos cabe a função de dizer que chegou a hora de parar e deixar a vida atingir seu fim irrevogável. Mas penso que o médico(incluindo a mim mesmo) ainda está distante do nível de humanidade necessário para o tratamento do sofrimento. Vejo, por exemplo, que não teria o desapego de enfermeiras ou fisioterapeutas que lidam diariamente com as excreções normais e patológicas, dando banho, trocando ou aspirando os pacientes.
A doença é, certamente, um negócio para os profissionais da saúde, mas alguns acrescentam de si a compaixão que entregam graciosamente e então demonstram seu valor como pessoas. São poucos, mesmo porque tal dedicação é dura, dolorosa em si e até incompatível com a luta pela sobrevivência e com a pressa, sua filha dileta.
A espiritualidade e a inquisição interior dos motivos da vida e seus percalços são suportes fundamentais para organizarmos uma postura própria diante dos problemas. O conhecimento de tecnologias científicas e espirituais são ferramentas a serem adquiridas para o trabalho. Uma vez feito isso, é hora de partir para o campo real da batalha diária e procurar, sinceramente, fazer o melhor para o outro.