Gosto de ser neurologista. Dá uma sensação de conforto a visão mecanista do ser humano que ainda persiste(e subsiste) na neurologia clínica. Reduzimos o sistema nervoso central e periférico a uma trama anatômica e funcional complexa que deve responder por todas as alterações que somos capazes de perceber em termos médicos. São cem bilhões de neurônios interconectados, transferindo a cada instante mais de uma dezena de tipos diferentes de neurotransmissores e neuromoduladores por meio dos trilhões de sinapses "causando" todos os comportamentos, sem falar da própria existência da mente, dos sinais e sintomas motores, sensitivos e cognitivos entre outros. É claro que essa sensação de conforto assemelha-se à de um bebê no colo de uma mãe em plena tempestade. Pura ilusão. Contudo, não invejo meus colegas psicólogos(as) e psiquiatras pois a tarefa deles é bem mais difícil.
Na neurologia, como tudo é fundamentalmente material, os tratamentos por meio de remédios e medicamentos, quando existem, são também da mesma ordem material. Se a pessoa tem uma enxaqueca, damos um medicamento para a hora da crise e outro para prevenir que ela retorne(a crise, não o paciente!). Simples assim. Se o problema é epilepsia ou AVC ou neuropatia periférica ou esclerose múltipla, estou sempre atualizado e dominando os melhores tratamentos disponíveis mundialmente. E tudo se resume a alguns comprimidos, cápsulas ou até medicações injetáveis. Entretanto, é luminoso o fato de que tais tratamentos são disponíveis no plano material. Você pega um comprimido, sente seu cheiro, coloca na boca, reclama do gosto que fica e engole com bastante água. Se o resultado é satisfatório já são outros quinhentos... Todavia, se você tomar a medicação obterá dela seus efeitos, benéficos ou maléficos.
Na psicologia e na psiquiatria, principalmente naqueles que seguem uma tendência menos biologizante, a situação é bem mais complicada. As queixas e sintomas são abstratos, as causas são impalpáveis e os tratamentos, então, são um caso à parte. Basta observar as diferentes teorias da personalidade para ver como o imponderável está ali presente, abrindo portas que vão dar em labirintos. Freud, Jung, Rogers, Skinner, Vygotsky e outros renomados cientistas da mente elaboraram teorias radicalmente diferentes e todas igualmente capazes de explicar os fenômenos psíquicos, assim como propor tratamentos eficazes. Onde estaria a verdade? Existe uma ou várias? Vale tudo quando se fala da psique humana?
Mas isso não é todo o problema. O pior é lembrar que grandes mestres indianos do passado, como Shankaracharya, diziam que nenhum remédio funciona se estiver guardado na gaveta. Um remédio precisa ser tomado, não importa quão amargo seja, se quisermos obter seus efeitos. Aí é que mora a dor dos terapeutas da alma.
É desconcertante ser capaz de enxergar o problema, prescrever o remédio que se sabe ser eficaz e ver a pessoa continuar remoendo o sintoma sem conseguir compreender que precisa tomar, efetivamente, o remédio para ser curada.
Alguns tratamentos são do tipo que eu chamaria de "positivos". São aquelas ações a serem tomadas, do tipo: "peça o divórcio", "faça ginástica", "tire férias", "demonstre seus limites", "compre um cachorro", "arrume sua casa", "faça meditação, yoga, tai chi, qi gong". São medidas concretas a serem implementadas.
Já é difícil fazer as pessoas compreenderem que algumas atitudes externas podem auxiliar a modificar o modo que se encontram suas disposições internas. Mas ainda é mais difícil prescrever os tratamentos que implicam no abandono de certos hábitos e atitudes. As ações, nesse caso, são do tipo negativo: "liberte-se da vaidade", "seja menos possessivo", "descarte seu orgulho", "deixe de lado o egocentrismo", "acabe com a competitividade", "pare de se comparar com os outros". Mesmo que o terapeuta curador diga -- Isso está lhe destruindo!; o progresso é pouco e lento. As pessoas são quase incapazes de tomar o remédio porque sequer conseguem enxergar o problema existente dentro delas mesmas, tão emaranhadas que estão na teia das ilusões da mente. Na cabeça delas a questão é simples: os outros estão errados e lhe causam sofrimento!
É impressionante que nesse campo, quando o tratamento consiste em "cortar na própria carne", somos pródigos em fazer diagnósticos e dar as receitas para os outros, mas na hora de se tratar... Até aqueles que se aplicam em disciplinas espirituais e que estariam mais no fronte de batalha contra o próprio ego claudicam no momento de introjetar o que aprendem.
Por isso é mais fácil ser neurologista que psicólogo. É mais fácil tratar o corpo do que a alma.
Se é assim, por que me sinto às vezes tão frustrado?! É porque nós que por ofício precisamos reduzir a complexidade do ser humano a um aparelho orgânico, meramente material, temos também a sensação de termos chegado tarde, quando só os efeitos aparecem e nos falta o poder de atuar nas causas. Com toda compaixão que tenho, procuro me dedicar a aliviar o sofrimento dos pacientes com Alzheimer, com tumores cerebrais, com doenças neurológicas incuráveis (e são muitas!). Mas como eu adoraria ter chegado um pouco antes, ainda a tempo de dizer, "liberte-se dos apegos", "neutralize suas aversões", "seja mais amoroso", como podem fazer os terapeutas da alma.
É melhor impedir que a rocha despenque quando ela ainda está no pico da montanha. Tentar reconstruir depois do estrago ter sido feito no sopé é uma tarefa sempre inglória. Por esse motivo, além da prática neurológica que preciso executar, sempre que posso tento também ajudar a preservar o lugar onde fica a verdadeira riqueza humana. A alma.
Na psicologia e na psiquiatria, principalmente naqueles que seguem uma tendência menos biologizante, a situação é bem mais complicada. As queixas e sintomas são abstratos, as causas são impalpáveis e os tratamentos, então, são um caso à parte. Basta observar as diferentes teorias da personalidade para ver como o imponderável está ali presente, abrindo portas que vão dar em labirintos. Freud, Jung, Rogers, Skinner, Vygotsky e outros renomados cientistas da mente elaboraram teorias radicalmente diferentes e todas igualmente capazes de explicar os fenômenos psíquicos, assim como propor tratamentos eficazes. Onde estaria a verdade? Existe uma ou várias? Vale tudo quando se fala da psique humana?
Mas isso não é todo o problema. O pior é lembrar que grandes mestres indianos do passado, como Shankaracharya, diziam que nenhum remédio funciona se estiver guardado na gaveta. Um remédio precisa ser tomado, não importa quão amargo seja, se quisermos obter seus efeitos. Aí é que mora a dor dos terapeutas da alma.
É desconcertante ser capaz de enxergar o problema, prescrever o remédio que se sabe ser eficaz e ver a pessoa continuar remoendo o sintoma sem conseguir compreender que precisa tomar, efetivamente, o remédio para ser curada.
Alguns tratamentos são do tipo que eu chamaria de "positivos". São aquelas ações a serem tomadas, do tipo: "peça o divórcio", "faça ginástica", "tire férias", "demonstre seus limites", "compre um cachorro", "arrume sua casa", "faça meditação, yoga, tai chi, qi gong". São medidas concretas a serem implementadas.
Já é difícil fazer as pessoas compreenderem que algumas atitudes externas podem auxiliar a modificar o modo que se encontram suas disposições internas. Mas ainda é mais difícil prescrever os tratamentos que implicam no abandono de certos hábitos e atitudes. As ações, nesse caso, são do tipo negativo: "liberte-se da vaidade", "seja menos possessivo", "descarte seu orgulho", "deixe de lado o egocentrismo", "acabe com a competitividade", "pare de se comparar com os outros". Mesmo que o terapeuta curador diga -- Isso está lhe destruindo!; o progresso é pouco e lento. As pessoas são quase incapazes de tomar o remédio porque sequer conseguem enxergar o problema existente dentro delas mesmas, tão emaranhadas que estão na teia das ilusões da mente. Na cabeça delas a questão é simples: os outros estão errados e lhe causam sofrimento!
É impressionante que nesse campo, quando o tratamento consiste em "cortar na própria carne", somos pródigos em fazer diagnósticos e dar as receitas para os outros, mas na hora de se tratar... Até aqueles que se aplicam em disciplinas espirituais e que estariam mais no fronte de batalha contra o próprio ego claudicam no momento de introjetar o que aprendem.
Por isso é mais fácil ser neurologista que psicólogo. É mais fácil tratar o corpo do que a alma.
Se é assim, por que me sinto às vezes tão frustrado?! É porque nós que por ofício precisamos reduzir a complexidade do ser humano a um aparelho orgânico, meramente material, temos também a sensação de termos chegado tarde, quando só os efeitos aparecem e nos falta o poder de atuar nas causas. Com toda compaixão que tenho, procuro me dedicar a aliviar o sofrimento dos pacientes com Alzheimer, com tumores cerebrais, com doenças neurológicas incuráveis (e são muitas!). Mas como eu adoraria ter chegado um pouco antes, ainda a tempo de dizer, "liberte-se dos apegos", "neutralize suas aversões", "seja mais amoroso", como podem fazer os terapeutas da alma.
É melhor impedir que a rocha despenque quando ela ainda está no pico da montanha. Tentar reconstruir depois do estrago ter sido feito no sopé é uma tarefa sempre inglória. Por esse motivo, além da prática neurológica que preciso executar, sempre que posso tento também ajudar a preservar o lugar onde fica a verdadeira riqueza humana. A alma.