Estava conversando com um garoto de 15 anos, pertencente à classe média e frequentador de uma boa escola particular em São Paulo. Ele me contava de uma "brincadeira" que seu grupo de amigos faz periodicamente. Chama-se brigar sem perder a amizade e consiste em rounds de luta de rua (street fight, como meu orgulhoso interlocutor enunciou) em que os adolescentes se atingem com socos, pontapés, chaves de braço, imobilizações e outros golpes, incluindo o famigerado "murro na cara". Os limites são apenas 2: em caso de sangramento a luta é interrompida e ninguém pode perder a amizade.
Evidentemente, em muitas ocasiões o ringue improvisado ora na casa de um, ora na casa de outro(longe dos pais), fica marcado com respingos de sangue, pedaços de dentes quebrados, algumas lágrimas e o eco das gargalhadas de humilhação coletiva contra os perdedores(o golpe final sobre quem já levou bastante).
Nessa brincadeira "inocente" valem muito os atos de submissão desonrosa, como imobilizar o oponente e dar tapinhas no rosto, temperando com um toque de sadismo o processo inteiro. Só não é permitido atingir as partes baixas, se bem que exista um certa condescendência para quem lança mão dessa tática se estiver apanhando muito.
Depois de tentar esconder meu horror, afinal sou ainda do tempo em que "não se bate na cara de um homem", procurei orientar o rapaz sem parecer muito quadrado. Uma atitude mais intempestiva poderia me valer a pecha de careta ou demodé, isso nos termos apropriados à minha geração.
Ficou, entretanto, a reflexão sobre os motivos desse tipo de comportamento.
Lançando mão dos conhecimentos de biologia, pensei ter encontrado na raiz animal do ser humano a causa do "clube da luta" tupiniquim. Especialmente para os mamíferos predadores, são comuns as brincadeiras de lutas entre adolescentes como forma de treinamento lúdico para a vida real que os aguarda. Também lembrando das matilhas e alcatéias, a eleição dos machos alfa acontece nas demonstrações de força. A preservação desse status social depende de resistir aos constantes desafios dos machos beta, hoje curiosamente em moda entre os humanos por serem mais sensíveis e carinhosos.
Por outro lado, escapando da explicação biológica, imagino se não estamos em um ponto da sociedade no qual o descrédito em relação à racionalidade(herdada como ideal humano das épocas iluministas), como forma de resolução de conflitos tenha chegado a um nível em que alguns homens passam a se sentirem mais homens exatamente quando são mais animais. Outras formas de primitivismo socialmente permitido poderiam ser os esportes - cada vez mais de contato físico - e as torcidas. A pressão da panela parece estar aumentando e se não contamos com a razão para diminuir o fogo que a alimenta, resta-nos soltar a válvula de escape constituída pelo atavismo irracional.
Pensando agora sob a perspectiva cultural, vivemos uma época de crise de identidade na qual a sensação de pertencimento a uma comunidade se dissolve no mar de homogeneidade da modernidade líquida, conforme Zygmunt Baumann. Diante da relativização de valores e da insustentabilidade ética, é preciso ter algo forte, capaz de impor algum relevo sobre um terreno que parece por demais igual, apesar de tanta diversidade. A construção desse ponto de significação densa, marco de orientação e eixo em volta do qual gira o mundo simbólico da identidade, pode ser a adesão a uma religião, como bem explica Mircea Eliade (em O Sagrado e o Profano), e ainda a constituição de grupos com regras muito próprias e rígidas, por mais que corrompidas na questão moral. Ou talvez esses fenômenos desafiem a lógica justamente pela necessidade de desafiá-la como forma de assegurar uma diferença no mundo, base para a constituição de uma comunidade.
O fato é que o ideal do belo, da harmonia e da realização do humano e de sua essência - que poderia até transcender a materialidade - parece cada vez mais distante e utópico. Não é à toa que o modelo de desenvolvimento econômico global cede ao capitalismo selvagem e nos lança na crise mundial que enfrentamos.
Isso é apenas a ponta do iceberg.
Evidentemente, em muitas ocasiões o ringue improvisado ora na casa de um, ora na casa de outro(longe dos pais), fica marcado com respingos de sangue, pedaços de dentes quebrados, algumas lágrimas e o eco das gargalhadas de humilhação coletiva contra os perdedores(o golpe final sobre quem já levou bastante).
Nessa brincadeira "inocente" valem muito os atos de submissão desonrosa, como imobilizar o oponente e dar tapinhas no rosto, temperando com um toque de sadismo o processo inteiro. Só não é permitido atingir as partes baixas, se bem que exista um certa condescendência para quem lança mão dessa tática se estiver apanhando muito.
Depois de tentar esconder meu horror, afinal sou ainda do tempo em que "não se bate na cara de um homem", procurei orientar o rapaz sem parecer muito quadrado. Uma atitude mais intempestiva poderia me valer a pecha de careta ou demodé, isso nos termos apropriados à minha geração.
Ficou, entretanto, a reflexão sobre os motivos desse tipo de comportamento.
Lançando mão dos conhecimentos de biologia, pensei ter encontrado na raiz animal do ser humano a causa do "clube da luta" tupiniquim. Especialmente para os mamíferos predadores, são comuns as brincadeiras de lutas entre adolescentes como forma de treinamento lúdico para a vida real que os aguarda. Também lembrando das matilhas e alcatéias, a eleição dos machos alfa acontece nas demonstrações de força. A preservação desse status social depende de resistir aos constantes desafios dos machos beta, hoje curiosamente em moda entre os humanos por serem mais sensíveis e carinhosos.
Por outro lado, escapando da explicação biológica, imagino se não estamos em um ponto da sociedade no qual o descrédito em relação à racionalidade(herdada como ideal humano das épocas iluministas), como forma de resolução de conflitos tenha chegado a um nível em que alguns homens passam a se sentirem mais homens exatamente quando são mais animais. Outras formas de primitivismo socialmente permitido poderiam ser os esportes - cada vez mais de contato físico - e as torcidas. A pressão da panela parece estar aumentando e se não contamos com a razão para diminuir o fogo que a alimenta, resta-nos soltar a válvula de escape constituída pelo atavismo irracional.
Pensando agora sob a perspectiva cultural, vivemos uma época de crise de identidade na qual a sensação de pertencimento a uma comunidade se dissolve no mar de homogeneidade da modernidade líquida, conforme Zygmunt Baumann. Diante da relativização de valores e da insustentabilidade ética, é preciso ter algo forte, capaz de impor algum relevo sobre um terreno que parece por demais igual, apesar de tanta diversidade. A construção desse ponto de significação densa, marco de orientação e eixo em volta do qual gira o mundo simbólico da identidade, pode ser a adesão a uma religião, como bem explica Mircea Eliade (em O Sagrado e o Profano), e ainda a constituição de grupos com regras muito próprias e rígidas, por mais que corrompidas na questão moral. Ou talvez esses fenômenos desafiem a lógica justamente pela necessidade de desafiá-la como forma de assegurar uma diferença no mundo, base para a constituição de uma comunidade.
O fato é que o ideal do belo, da harmonia e da realização do humano e de sua essência - que poderia até transcender a materialidade - parece cada vez mais distante e utópico. Não é à toa que o modelo de desenvolvimento econômico global cede ao capitalismo selvagem e nos lança na crise mundial que enfrentamos.
Isso é apenas a ponta do iceberg.