Qual o tempo que esperamos viver? Quando estamos preparados para a morte? A que condições somos capazes de nos submeter com a finalidade de permanecermos vivos? Se não temos essas respostas claras para nós mesmos, como podemos dispor da vida do outro e decidir o momento de parar?
Do ponto de vista da medicina, a idéia de vida modificou-se com o passar do tempo. Antes, quando o coração parava e a respiração cessava, ali findava o ciclo da vida. Mas com o surgimento das técnicas de ressuscitação cardiopulmonar, como massagem cardíaca, respiração artificial por ventilação mecânica e outras medidas intensivas, o limite foi transposto e nos tornamos capazes de prolongar quase indefinidamente as funções corpóreas.
Novos debates entre cientistas e a comunidade surgiram e observando-se o comportamento de certos pacientes que atingiam um ponto de irreversibilidade, emergiu o conceito de morte cerebral. Trata-se do ponto em que existe o dano cerebral completo e irremediável, com parada da circulação sanguínea intracraniana, cessação da atividade elétrica cerebral conforme detectada pelo eletroencefalograma e a morte das células cerebrais com a interrupção definitiva do metabolismo. Esse é o novo conceito de morte, o da morte encefálica, que permite inclusive o uso dos órgãos físicos, ainda mantidos por suporte artifical, para a realização de transplante.
Para satisfazer os critérios legais para o diagnóstico de morte encefálica, há uma série de procedimentos a serem seguidos: o paciente deve estar livre de condições que possam interferir no resultado dos testes (hipotermia, alterações do sódio, uso de sedativos ou anestésicos etc); dois médicos devem realizar os testes clínicos e constatar o mesmo resultado com pelo menos seis horas entre os exames; obter a confirmação de morte cerebral por meio de um dos métodos diagnósticos disponíveis como angiografia cerebral, EEG, doppler transcranianao, PET scan etc.
O diagnóstico de morte encefálica chama a atenção para o fato de que é o cérebro - e a mente - que caracteriza o estar vivo. Contudo, se esses critérios são suficientes e interessantes para os casos de morte prematura em um acidente automobilístico, por exemplo, eles ainda deixam dúvidas e incerteza em outras situações como o caso das demências e outras degenerações cerebrais.
Não pretendo aqui determinar o momento de parar os tratamentos; acho que essa é uma decisão da família devidamente esclarecida pelo médico. Mas gostaria de contribuir para o debate acerca da questão, especialmente porque vejo diariamente familiares desesperados e despreparados para o êxito letal de um idoso que já se encontra em estado quase vegetativo e identifico médicos dispostos a extender ao máximo a vida desses pacientes por questões que o decoro me impedem de externar.
Com o intuito de prover um instrumento legal para evitar a distanásia, o prolongamento do sofrimento no processo da morte, o Conselho Federal de Medicina publicou em 2006 a resolução 1805 que foi posteriormente derrubada por liminar judicial. Na ementa do texto dizia:
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
Apesar da suspensão por meios jurídicos da medida, o debate continua aceso e a prática mostra que muitas famílias pedem aos médicos que promovam apenas os cuidados paliativos aos seus entes queridos em fase terminal. Na minha opinião, nada melhor para alguém realizando seu passamento do que estar ao lado da família, em um ambiente acolhedor e longe de uma UTI.
Para contribuir com a discussão, gostaria de sugerir que pensássemos em termos do que é ser uma pessoa. Essa é a maior qualidade do ser humano e abrangente o suficiente para conter toda a variedade da vida, incluindo as condições de incapacidade física e mental. De algum modo, compreender o que é ser pessoa pode ser a maneira de distinguir entre a vida vegetativa própria da funções orgânicas e a vida de relação, base para o comportamento.
A palavra pessoa vem de persona, que significa máscara em latim. Também lhe é atribuída uma origem grega e se reportaria às máscaras utilizadas no teatro que continham uma abertura pela qual soava a voz (per sonare) e daí vem também a origem de personagem.
A idéia principal parece ser de que ser pessoa é ser personagem, é ter um papel social que se desempenha. Os vários papéis que desepenhamos consitituiriam nossa personalidade.
Gostaria de explorar aqui um pouco mais essa idéia e refletir sobre o que a idéia de máscara implica. Se temos um limite evidenciado por uma máscara é porque temos um lado de dentro, íntimo e privado - o nosso lado subjetivo e um lado de fora, público e visível, que nos permite a relação com o mundo objetivo e a partir do qual nos tornamos também objetificados - o nosso lado objetivo.
Na minha concepção, ser pessoa é ter a capacidade de intermediar o que passa pela máscara. É escolher o que fica dentro e o que fica fora. É estabelecer o gradiente que separa o que é subjetivo do que é objetivo. Ser humano é, em certa medida, não ser totalmente transparente. Dizem que a mentira é uma qualidade humana e acho que a dissimulação faz parte de nossas estratégias de sobrevivência social e uma maneira de preservar o que é íntimo quando isso parece muito dissonante do que se espera de nós. Sei que para alguns, a meta espiritual da vida é alcançar a transparência completa e estar em uma união não-dual com o universo, mas a decisão de trilhar esse caminho parte da pessoa dual.
Por um mecanismo curioso e intrínseco ao fato de sermos pessoas privadas que se relacionam socialmente por meio de máscaras ou papéis, somos também capazes de reconhecer quando estamos diante de outra pessoa. Podemos não saber tudo que se passa na mente do outro, mas sabemos com certeza que o outro é alguém como nós, um agente intencional que tem seu mundo interior inexpugnável.
Estamos todos adaptados ao esquema de relacionamento que se segue: sujeito --> sujeito objetificado pela máscara social --> mundo objetivo --> o outro objetificado por sua própria máscara --> o outro como sujeito.
Conforme nos relacionamos com outras pessoas, somos capazes de perceber quem elas são através dos caráteres transparentes e opacos de suas personas. Nossas experiências com essas pessoas formam um acervo de memórias que "salvamos" como a identidade do outro no nosso sistema mental.
O que proponho é estarmos atentos para a pessoa do outro, especialmente nos casos de doenças terminais como a demência de Alzheimer. Infelizmente, chega um momento em que a família olha para o doente e só consegue ver quem ele é através das memórias guardadas porque a pessoa foi se dissolvendo ao longo do processo degenerativo do cérebro e não está mais ali presente. Talvez seja essa a hora de começar a pensar em um tratamento mais piedoso e menos intervencionista.
A questão está longe de chegar a um consenso, mas acredito que quando se trata de doenças que prosseguem indefectivelmente para a degradação da pessoa, é preciso considerar muito mais do que a simples manutenção das funções orgânicas e entender que a qualidade de vida não é apenas a ausência de dor ou outros sofrimentos físicos.