quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Olhares perdidos

Conforme a idade avança, todos nós experimentamos o declínio natural das funções orgânicas, tanto físicas como mentais. O processo de senescência é fisiológico, do mesmo modo que a infância ou a adolescência. Essas fases contêm particularidades que devem ser vistas, compreendidas e valorizadas de acordo com seu contexto. Algumas patologias, todavia, são dependentes da idade e no caso da Doença de Alzheimer quanto mais velho, maior a chance de um indivíduo manifestar o problema. Distinguindo a senescência como processo natural do quadro patológico de senilidade, podemos oferecer os tratamentos e cuidados adequados a cada pessoa, preservando a dignidade e a qualidade de vida.
A doença de Alzheimer atinge aproximadamente 1,5% da população norte-americana, o que equivale a cerca de 4 milhões de pessoas acometidas pela doença. No Brasil, as estimativas sugerem algo em torno de 1,5 milhão de pacientes com o mal. Uma das características fundamentais é o comprometimento dito escalonado da memória.
Em primeiro lugar fica alterada a capacidade de retenção para fatos recentes, junto com uma dificuldade de atenção e concentração. Posteriormente, as memórias antigas também são corrompidas de tal modo ainda que vão se perdendo das mais novas (em anos) para as mais remotas. A tradução clínica é uma tendência do idoso viver no passado e contar, repetidas vezes, estórias antigas da sua juventude. Além da dismnésia, outros sintomas cognitivos podem aparecer, como a dificuldade para lembrar o nome das coisas, diminuição da fluência verbal, incapacidade para reconhecer rostos conhecidos, perdas das habilidades de cálculos etc. A falta de percepção da própria condição de doença é chamada anosognosia e está presente em muitos pacientes.
Com o avançar da doença, as deficiências vão progredindo e aquilo que era notado apenas pelos familiares, passa a ser percebido por qualquer um que tenha contato com o idoso. Suas capacidades mentais estão visivelmente prejudicadas. Todavia, as interações afetivas ainda são possíveis e mudanças de temperamento ou humor não são raras. Alguns podem se tornar bastante sociáveis, interagindo com desconhecidos sem restrições. Outros podem assumir uma postura mais defensiva e evitar o contato social.
Aqui já surgem alguns mitos que podem ser bastante negativos. As mudanças de comportamento e afeto são interpretadas por muitos leigos como uma desrepressão de conteúdos psicológicos que ficaram recalcados durante toda a vida. Esse tipo de visão, além de não ser embasada em fatos científicos, pode ser a origem de diversos problemas e preconceitos. Basta imaginar uma senhora que sempre foi muito gentil e educada que desenvolva, em decorrência das lesões cerebrais do Alzheimer, um linguajar chulo, agressividade ou comportamento sexual não inibido. Se acreditarmos na hipótese da desrepressão do inconsciente, diremos que na verdade a paciente sempre foi uma despudorada, obscena e dissimulada, pois tinha compostura antes de ficar doente.
Claro que não podemos aceitar tal interpretação. Primeiro porque as atitudes de uma vida inteira são muito mais representativas da verdade de uma pessoa do que uma situação momentânea relacionada a uma doença. Depois, porque o comprometimento cerebral do Alzheimer não é homogêneo por todo sistema nervoso, podendo afetar certos circuitos inicialmente mais que outros, causando os comportamentos bizarros. Além disso, não acontece da mesma maneira com todas as pessoas. Por fim, as lesões neuronais não obedecem os planos do modelo de personalidade freudiana, ou seja, não comprometem as camadas mais superficiais do consciente, depois o subconsciente e por fim o inconsciente; do mesmo modo que não "ataca" preferencialmente o superego, liberando o id.
O resumo disso é que ao encararmos um paciente com Alzheimer que desenvolve um distúrbio de comportamento, devemos enxergar antes de tudo uma pessoa doente cujos atos intencionais e volitivos se encontram solapados desde a sua construção cognitiva básica. Ela não pode ser responsabilizada por suas ações, nem desacreditada em sua história de vida.
Raciocínio semelhante precisa ser desenvolvido também no que diz respeito às relações interpessoais do paciente com demência. Às vezes o paciente não reconhece os filhos, ou chama a figura de mulher que está atualmente mais próxima de "mãe", ou então parece ter predileção por alguns filhos em detrimento dos outros. Tudo isso gera ansiedade nos familiares, especialmente os filhos que podem se sentir excluídos do círculo de afeto do genitor. Perguntam-se: "porque ela se lembra do nome do João, mas não do meu?"
Novamente, essas não são escolhas pessoais do paciente, nem significam que exista algo mal resolvido com um determinado familiar. As relações dos portadores da doença, a partir de determinado estágio, são construídas por meio de associações inextricáveis e irracionais. Dependem de fragmentos de memória desconexos que se reagrupam de modo inconsequente. Não dá para saber nem como, nem porque, mas apenas entender que não há culpa em ninguém.
Para encerrar essas considerações sobre o mal de Alzheimer, gostaria de lembrar aquilo que costumo chamar de "fantasia do cativeiro". Com a progressão da doença, o paciente perde as funções mentais superiores e também as capacidades motoras. Fica então limitado a uma poltrona ou ao leito e não contactua mais verbalmente. O ciclo sono-vigília se desconstrói e pode passar muito tempo sonolento e quando acorda tem pouca ou nenhuma reação psicologicamente compreensível. Nesse ponto, alguns familiares podem desenvolver a fantasia do cativeiro que é imaginar que aquela pessoa que eles sempre conheceram está lá dentro daquele doente, aprisionada em algum lugar tentando se comunicar com o exterior de algum modo.
Partindo desse pressuposto, os familiares "constróem" uma nova linguagem com a qual conseguem compreender o que está "realmente" passando pela mente do idoso demenciado. Claro que certas habilidades de comunicação permanecem e é possível reconhecer que o paciente sente dor na barriga quando geme, do mesmo modo como reconhecemos isso nos bebês. Mas uma linguagem rudimentar só pode transmitir mensagens rudimentares. Por mais que possa ser dolorido se render aos fatos, não podemos imaginar que o olhar perdido de um paciente, já sem contato verbal, significa que "esteja com saudade do tempo em que morou na Espanha".
Sei que muitos parentes relutarão em se desfazer dessa fantasia. Mas nosso propósito é o melhor possível.
Na verdade, junto com a idéia do aprisionamento da mente no corpo deteriorado, surge a percepção de um sofrimento que não existe em princípio e quem sofre mais são os familiares que acabam por imaginar como seria se eles mesmos estivessem aprisionados. Esse sofrimento psicológico ou filosófico do aprisionamento nos limites do corpo, existente até em quem tem saúde e está de posse de suas faculdades mentais, ele não existe no paciente de Alzheimer que é inconsciente de sua condição desde as fases iniciais da doença.
Mas e quanto àqueles que acreditam na alma ou no espírito que sobrevive ao corpo? Não é justo para eles pensarem dessa maneira?
Na minha opinião, baseado em teorias filosóficas de mente, penso que a mente existe apenas incorporada e que a visão dualista cartesiana ou espiritualista carece de sustentação lógica. Temos uma sensação de uma mente separada a partir da experiência do "self", do sujeito que existe dentro de nós e que enxerga os objetos que são "não-self", incluindo aí, por questões culturais, o próprio corpo. A experiência dessa mente abstrata, incorpórea e independente só é possível pelos mecanismos cerebrais que temos à nossa disposição fisicamente.
Isso não quer dizer que não possa haver uma mente imaterial ou espírito, mas apenas que o que entendemos como mente imaterial ou espírito são construções que passam pelo filtro da nossa constituição orgânica cerebral e dependem dela.
Desse modo, não existe a mente imaterial sem o cérebro material, ao menos no plano físico que não prescinde dos veículos físicos da manifestação.
Caso "exista" uma mente, ou alma, ou espírito além do corpo, uma vez perdido o corpo eles serão outra coisa que somos incapazes de descrever em palavras porque existem em outro nível de realidade. Lembremos de Sócrates que se recusou a fugir da prisão, afirmando que não havia o que temer já que uma cadeia não seria capaz de prender seu espírito.
Por esse motivo, ao invés de imaginar que a mente lúcida de um paciente esteja aprisionada em um corpo doente, prefiro pensar que seus olhares perdidos são sinal de que seu espírito já está livre.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Síndrome de Burnout: a nova face do esgotamento

Você é uma pessoa empreendedora, dinâmica, cheia de iniciativa e gosta do que faz. Seu empenho se reflete em reconhecimento dos colegas de trabalho que sempre confiam em você para resolver os mais diversos problemas. Sua dedicação é utilizada como modelo exemplar pelo chefe que lhe garante, reiteradamente, que seu futuro será brilhante. Tudo vai bem, até que algo desanda e parece lhe tirar da rota. Atrasos, esquecimento de compromissos, perda do vigor mental e físico, cansaço contínuo, dificuldade em atingir as metas, sensação de uma barreira intransponível sobre si, problemas de relacionamento, gastrite, insônia e um azar generalizado. Você pensa: "Será macumba?!" Pode ser, mas o mais provável é que você tenha passado dos seus próprios limites e se encontra em estado de esgotamento, atualmente conhecido como "síndrome de burnout".

A vida profissional exige muito mais do que o cumprimento de prazos e execução impecável de tarefas. Na realidade, para atingir um desempenho alto lançamos mãos de habilidades que se desenvolvem em um plano mais sutil, talvez energético, se quisermos usar esse nome. Além do conhecimento técnico de que dispomos e do tempo utilizado de fato para a realização de uma atividade, movimentamos nossa energia de várias maneiras. Gastamos energia para criar e manter laços de trabalho e convivência, controlar os horários de sono e vigília, para equacionar as demandas da vida social/familiar e profissional.


Enquanto conseguimos dar conta de tudo isso, o resultado é de sucesso nos empreendimentos. Mas não é infrequente que quanto maior o "sucesso" maior o número de atribuições que são incorporadas ao trabalho e maior a energia gasta para mantê-las. Chega um determinado momento em que nosso gasto energético é maior que nossa capacidade de reposição das nossas forças. Com um balanço negativo de vitalidade, a consequência é o estresse crônico e, eventualmente, o colapso.


Como as capacidades de renovação e recuperação de energia são variadas entre as pessoas, o mesmo acontecendo com a resiliência que é a capacidade de resistir às intempéries, cada um terá um ponto diferente de virada para uma situação de desequilíbrio.


É importante ficar atento aos sintomas que se instalam progressivamente. Sensação de cansaço extremo à noite, sensação de que o sono não foi suficientemente reparador quando acorda pela manhã são sintomas comuns. Diminuição do apetite sexual, ansiedade e tendência a buscar alimentos mais calóricos. Indisposição para se divertir, preferindo ficar em casa do que passear nos finais de semana já é sinal de anedonia e denota um estágio mais avançado. Queda do rendimento mental, com perda de concentração e dificuldade de atenção e memória são sintomas de esgotamento, mas a falta de criatividade aparece ainda antes disso. As habilidades sociais são comprometidas, resultando em dificuldade de trabalhar em grupo ou cooperar em tarefas, indisposição geral associada a irritabilidade e impaciência com os colegas. O indivíduo se torna mais chato, introvertido, mal-humorado, agressivo, intolerante, sarcástico, encontra defeito em tudo e não consegue se sentir feliz pelos outros.


Essa constelação de sintomas tende a se agravar à medida que a pessoa começa a se sentir frustrada e deixa de fazer outras atividades sociais. A rotina mental é uma das causas da síndrome de burnout, talvez mais importante do que as situações nas quais existem altas exigências. Tal fato se agrava quando a pessoa vai deixando de fazer outras coisas que são diferentes do trabalho, por falta de disposição. O azar generalizado é apenas a consequência da perda das habilidades não-verbais e por transmitir, o tempo todo, uma mensagem silenciosa negativa para quem está à sua volta. Os colegas, clientes, funcionários, familiares percebem inconscientemente e reagem.


Como evitar tudo isso? Evidentemente, nenhum suplemento vitamínico ou booster mental resolve a situação. Do mesmo modo, os anti-depressivos e ansiolíticos apenas amenizam alguns sintomas. Happy-hours, bebida e outros meios de desconectar não são suficientes e podem trazer mais problemas.


É preciso fazer um bom diagnóstico do quadro geral e identificar como está gastando sua energia, seja nas horas trabalhadas ou nas habilidades não-explícitas. É fundamental observar se destina tempo suficiente para recuperar sua vitalidade. Nesse ponto existem sutilezas importantes. Uma delas é que o simples repouso pode recuperar parcialmente o corpo, mas não a mente. Para descansar o cérebro o importante é desconectá-lo do estado de rotina em que se encontra.


Então, pode-se fazer um trabalho voluntário ou ingressar em atividades espirituais, ou ainda aprender a tocar um instrumento, fazer esportes radicais como trekking, 4x4, arborismo, começar uma nova faculdade. Fazer várias coisas diferentes tira a mente da posição de ficar ciclando sempre no mesmo lugar, amplia a criatividade e nos permite uma visão mais abrangente.


Do ponto de vista físico, uma dieta mais saudável, perda de peso, atividade física regular são necessários para dar resistência e aumentar a energia e vitalidade geral. Boas horas de sono são indispensáveis, e isso em termos de quantidade e qualidade de descanso.


Por fim, vale a pena fazer uma análise da própria vida e ver se não está focalizando demais suas energias no trabalho como modo de evitar lidar com as outras áreas que talvez não estejam tão boas. Procurar um equilíbrio entre os campos espiritual, intelectual, afetivo, físico, sexual e social é fundamental para ter felicidade e qualidade de vida.


Com tudo isso posto em perspectiva, somos capazes de recuperar a felicidade, a alegria de viver e recuperar a boa sorte. A síndrome de burnout é, enfim, uma decorrência da falta de atenção consigo mesmo que pode e deve ser tratada desde suas causas.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Um remédio amargo de tomar

Gosto de ser neurologista. Dá uma sensação de conforto a visão mecanista do ser humano que ainda persiste(e subsiste) na neurologia clínica. Reduzimos o sistema nervoso central e periférico a uma trama anatômica e funcional complexa que deve responder por todas as alterações que somos capazes de perceber em termos médicos. São cem bilhões de neurônios interconectados, transferindo a cada instante mais de uma dezena de tipos diferentes de neurotransmissores e neuromoduladores por meio dos trilhões de sinapses "causando" todos os comportamentos, sem falar da própria existência da mente, dos sinais e sintomas motores, sensitivos e cognitivos entre outros. É claro que essa sensação de conforto assemelha-se à de um bebê no colo de uma mãe em plena tempestade. Pura ilusão. Contudo, não invejo meus colegas psicólogos(as) e psiquiatras pois a tarefa deles é bem mais difícil.
Na neurologia, como tudo é fundamentalmente material, os tratamentos por meio de remédios e medicamentos, quando existem, são também da mesma ordem material. Se a pessoa tem uma enxaqueca, damos um medicamento para a hora da crise e outro para prevenir que ela retorne(a crise, não o paciente!). Simples assim. Se o problema é epilepsia ou AVC ou neuropatia periférica ou esclerose múltipla, estou sempre atualizado e dominando os melhores tratamentos disponíveis mundialmente. E tudo se resume a alguns comprimidos, cápsulas ou até medicações injetáveis. Entretanto, é luminoso o fato de que tais tratamentos são disponíveis no plano material. Você pega um comprimido, sente seu cheiro, coloca na boca, reclama do gosto que fica e engole com bastante água. Se o resultado é satisfatório já são outros quinhentos... Todavia, se você tomar a medicação obterá dela seus efeitos, benéficos ou maléficos.
Na psicologia e na psiquiatria, principalmente naqueles que seguem uma tendência menos biologizante, a situação é bem mais complicada. As queixas e sintomas são abstratos, as causas são impalpáveis e os tratamentos, então, são um caso à parte. Basta observar as diferentes teorias da personalidade para ver como o imponderável está ali presente, abrindo portas que vão dar em labirintos. Freud, Jung, Rogers, Skinner, Vygotsky e outros renomados cientistas da mente elaboraram teorias radicalmente diferentes e todas igualmente capazes de explicar os fenômenos psíquicos, assim como propor tratamentos eficazes. Onde estaria a verdade? Existe uma ou várias? Vale tudo quando se fala da psique humana?
Mas isso não é todo o problema. O pior é lembrar que grandes mestres indianos do passado, como Shankaracharya, diziam que nenhum remédio funciona se estiver guardado na gaveta. Um remédio precisa ser tomado, não importa quão amargo seja, se quisermos obter seus efeitos. Aí é que mora a dor dos terapeutas da alma.
É desconcertante ser capaz de enxergar o problema, prescrever o remédio que se sabe ser eficaz e ver a pessoa continuar remoendo o sintoma sem conseguir compreender que precisa tomar, efetivamente, o remédio para ser curada.
Alguns tratamentos são do tipo que eu chamaria de "positivos". São aquelas ações a serem tomadas, do tipo: "peça o divórcio", "faça ginástica", "tire férias", "demonstre seus limites", "compre um cachorro", "arrume sua casa", "faça meditação, yoga, tai chi, qi gong". São medidas concretas a serem implementadas.
Já é difícil fazer as pessoas compreenderem que algumas atitudes externas podem auxiliar a modificar o modo que se encontram suas disposições internas. Mas ainda é mais difícil prescrever os tratamentos que implicam no abandono de certos hábitos e atitudes. As ações, nesse caso, são do tipo negativo: "liberte-se da vaidade", "seja menos possessivo", "descarte seu orgulho", "deixe de lado o egocentrismo", "acabe com a competitividade", "pare de se comparar com os outros". Mesmo que o terapeuta curador diga -- Isso está lhe destruindo!; o progresso é pouco e lento. As pessoas são quase incapazes de tomar o remédio porque sequer conseguem enxergar o problema existente dentro delas mesmas, tão emaranhadas que estão na teia das ilusões da mente. Na cabeça delas a questão é simples: os outros estão errados e lhe causam sofrimento!
É impressionante que nesse campo, quando o tratamento consiste em "cortar na própria carne", somos pródigos em fazer diagnósticos e dar as receitas para os outros, mas na hora de se tratar... Até aqueles que se aplicam em disciplinas espirituais e que estariam mais no fronte de batalha contra o próprio ego claudicam no momento de introjetar o que aprendem.
Por isso é mais fácil ser neurologista que psicólogo. É mais fácil tratar o corpo do que a alma.
Se é assim, por que me sinto às vezes tão frustrado?! É porque nós que por ofício precisamos reduzir a complexidade do ser humano a um aparelho orgânico, meramente material, temos também a sensação de termos chegado tarde, quando só os efeitos aparecem e nos falta o poder de atuar nas causas. Com toda compaixão que tenho, procuro me dedicar a aliviar o sofrimento dos pacientes com Alzheimer, com tumores cerebrais, com doenças neurológicas incuráveis (e são muitas!). Mas como eu adoraria ter chegado um pouco antes, ainda a tempo de dizer, "liberte-se dos apegos", "neutralize suas aversões", "seja mais amoroso", como podem fazer os terapeutas da alma.
É melhor impedir que a rocha despenque quando ela ainda está no pico da montanha. Tentar reconstruir depois do estrago ter sido feito no sopé é uma tarefa sempre inglória. Por esse motivo, além da prática neurológica que preciso executar, sempre que posso tento também ajudar a preservar o lugar onde fica a verdadeira riqueza humana. A alma.

segunda-feira, 30 de março de 2009

O que você faz com seu talento?

Se você tem um talento, aparecerá alguém para explorá-lo. É isso o que nos ensina a sabedoria chinesa taoista e não há como discutir o grau de verdade dessa afirmação. Basta observar os inúmeros exemplos publicamente visíveis como os esportistas ou encarar os fatos do nosso cotidiano. Somos explorados por nosso chefe, por nossos sócios, por nossos empregados e por aí vai. É preciso encontrar um meio para amenizar a situação e talvez a mesma sabedoria que nos alerta, proponha também a solução.
Certamente há aqueles que possuem talentos únicos e que também conseguem obter as recompensas do emprego de suas aptidões. Mas a maioria permanece explorada ou porque não tem consciência de que tem algo especial a oferecer ou porque não percebe que está sendo submetida. Dessa forma, vemos muitos grandes líderes que nada seriam sem a base e o apoio daqueles que efetivamente têm talentos e que trabalham.
Conheci vários casos desses, mas um deles foi bastante emblemático. Trata-se de um famoso cirurgião cuja maior habilidade era a de fazer marketing propalando sua perícia enquanto, na verdade, seus assistentes realmente capazes permaneciam na obscuridade. O cirurgião não tinha o talento que exibia e teve ainda a felicidade de encontrar-se com alguém extremamente hábil mas que não se importava com o reconhecimento público nem notava que produzia fortunas sem ter direito a elas.
Parece que há pessoas cujo único talento é explorar outros talentos. Aparecem sempre bonitos na fotografia, bem arrumados, com trejeitos elegantes e sabem bajular os ricos e poderosos. Aliás, essa é outra característica dessas pessoas, os interesses lhes movem o humor e desdenham consistentemente dos subalternos. Abramos os olhos para esses, pois caso contrário permitiremos que ganhem notoriedade e extendam seus domínios para explorar cada vez mais pessoas.
Voltando à China, fama, riqueza e poder são os motores e as metas de tais pessoas, exatamente os três venenos do ser humano, para a cultura antiga do Extremo Oriente hoje também já sucumbido aos valores individualistas da sociedade contemporânea.
A solução descoberta pelos sábios taoistas foi a da não-interferência, o não-lucro, o anonimato, a simplicidade. Exatamente o contrário da solução ocidental que seria a de encontrar os meios para se desvencilhar dos usurpadores e aprender a lucrar por si mesmo.
O dilema moral/espiritual dos que se empenham no bem é que para transformar talento em lucro, precisamos gastar nossa energia vital que poderia ser melhor utilizada na realização daquele mesmo talento em benefício do mundo. Por isso a opção pela pobreza ou pela vida modesta daqueles que trilham os caminhos superiores. É o caminho dos bodhisattvas, dos cristãos antigos e até de profetas modernos como Mahatma Gandhi. De fato, não há como servir a Deus e a Mamon (money) ao mesmo tempo.
Cabe aqui ressalvar que quem tem algum talento não deve ficar enfatuado por isso. Ao contrário, a atitude de humildade é essencial para a conservação e aplicação de seus dons. Lembrando de Nietzsche, façamos como seu Zaratustra que ensinava a não dar um nome para sua virtude, para evitar que se estabeleçam termos de comparação com os outros, o que acarreta sua destruição. Apenas vivamos conforme nossa virtude.
Seguindo, portanto, os conselhos da sabedoria antiga, dizemos aos possuidores de talentos e virtudes: "façam de suas aptidões uma doação em benefício do mundo". Essa é a única maneira de não cair no engodo do lucro, nem ser explorado por quem já é vassalo do capital. É isso mesmo! Dê de graça, assim ninguém poderá lhe roubar. Conserve-se vazio e aberto, ofereça o que tem de melhor sem esperar recompensa ou reconhecimento. Não serão os Céus que lhe trarão o pagamento, mas a própria liberdade decorrente de sua atitude será o motivo da sua felicidade.
Sem esperar nada, jamais sentimos falta de qualquer coisa. Livres dos apegos, estamos abertos para a vida.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Estimulação cerebral profunda na doença de Parkinson

Em pacientes com doença de parkinson cujo tratamento não alcança os resultados desejados ou existem efeitos colaterais graves relacionados à medicação, tais como as discinesias flutuantes, yo-yoing e outros, pode ser indicado um tratamento cirúrgico para a doença.
As primeiras cirurgias para a Doença de Parkinson se baseavam na realização de uma lesão por radiofrequência em alvos determinados na região dos gânglios da base. O inconveniente desse tipo de procedimento é que se a lesão é maior do que a planejada, a cirurgia pode resultar em perda de força de um lado do corpo, semelhante à causada por um acidente vascular cerebral. Alguns procedimentos foram proscritos, como certas lesões cirúrgicas bilaterais porque causavam a perda da linguagem e uma paralisia geral (mutismo acinético).
Atualmente, temos uma nova opção para casos selecionados que consiste na introdução de um dispositivo intracerebral para a estimulação elétrica dos alvos escolhidos. Essa técnica é denominada "deep brain stimulation (DBS)", ou em português, "estimulação cerebral profunda". As vantagens dessa estratégia incluem um menor dano cerebral (não se causa lesão por radiofrequência) e os geradores dos pulsos elétricos que ficam implantados sob a pele podem ser controlados remotamente para um melhor ajuste da "dose" de descargas necessária para controle dos sintomas. Permanece a dificuldade técnica, sendo necessário um bom preparo e indicação do procedimento pelo neurologista responsável pelo paciente e a intervenção de um neurocirurgião experiente para o implante dos eletrodos. Outro problema é o custo desses sistemas eletrônicos ainda bastane dispendiosos.
De qualquer modo, essa é mais uma abertura no horizonte do tratamento para os pacientes parkinsonianos que cada vez mais convivem harmonicamente com a doença, graças aos novos tratamentos disponíveis.
Para visualizar o esquema de colocação da DBS, assista ao vídeo relacionado ou clique no link abaixo.
http://www.youtube.com/watch?v=B6sqV7bEPo0&feature=related


terça-feira, 17 de março de 2009

Doença de Parkinson e suas manifestações não-motoras

A Doença de Parkinson é uma doença crônica e degenerativa do sistema nervoso central. Os principais sintomas são a rigidez, a lentidão de movimentos, o tremor de repouso e a instabilidade postural com tendência a quedas. Embora esses sintomas sejam a base para o diagnóstico do problema, existem também problemas não-motores que não recebem a mesma atenção por parte de médicos, cuidadores e familiares mas que causam desconforto aos portadores da moléstia.
Os pacientes parkinsonianos podem desenvolver alterações psiquiátricas como a psicose, a depressão e a ansiedade; alguns têm distúrbios autonômicos como queda de pressão arterial, obstipação intestinal e problemas urinários; muitos referem também queixas sensitivas como dores, inquietação(acatisia) e a síndrome das pernas inquietas. Nos pacientes com muitos anos de doença pode surgir ainda uma degeneração da esfera intelectual, constituindo um quadro de demência que se enquadra no conjunto de doenças da proteína tau.
Com o avanço da patologia, podem ser necessárias as idas aos pronto-socorros devido a quedas, infecções respiratórias, desmaios e outras situações de emergência. A compreensão da amplitude dos fenômenos relacionados ao Parkinson é importante especialmente para os cuidadores e familiares que normalmente tendem a focalizar apenas os distúrbios de movimento. Muitas vezes os sintomas de outras ordens não são valorizados ou não são se imagina que possam estar relacionados à patologia de base.
Outro fenômeno relevante é o que diz respeito ao uso excessivo de medicação. Devido à incapacidade causada pelos distúrbios de movimento, alguns pacientes abusam dos medicamentos e sofrem com as consequencias da sobredose. Dentre as medicações utilizadas para o tratamento do Parkinson, a mais eficaz para o controle dos sintomas motores é a levodopa, disponível em associação com a carbidopa ou com a benzerasida. É justamente essa substância a que mais comumente é utilizada em excesso. Ao perceber a melhora de suas capacidades para desempenhar as funções cotidianas, alguns pacientes passam a utilizar a levodopa em altas doses e então sobrevêm os efeitos colaterais físicos e psiquiátricos.
O uso prolongado e excessivo da levodopa pode induzir alterações neurológicas motoras como a discinesia. O paciente passa ter períodos em que surgem movimentos involuntários, como a coréia e a coreoatetose. O problema pode ser ainda um pouco maior porque as doses mais altas de levodopa produzem um certo estado de euforia e bem estar. Assim, não é infrequente encontrarmos pessoas com efeitos colaterais sérios e que informam estar se sentindo bem, dizendo até que se sentem desconfortáveis nas doses normais de medicação, apesar de conseguirem bom controle dos sintomas do ponto de vista médico.
Uma situação mais extremada ocorre na esfera neuropsiquiátrica e se denomina "Síndrome de Desregulação Homeostática Hedonística", também conhecida como Síndrome de Desregulação Dopaminérgica ou, simplesmente, como "os abusadores de levodopa". Algumas pessoas tornam-se dependentes de doses muito altas de levodopa (no Brasil as formas comerciais mais vendidas são o Prolopa e o Sinemet). Característicamente, costumam estocar a medicação e distribuir as cartelas pela casa, no carro, no escritório e em todos os lugares que o paciente costuma ir. Esse deve ser o primeiro sinal de alerta para a família. Outro fato que chama a atenção é que o paciente usa doses elevadas e fala para o médico que continua tomando as doses conforme foram prescritas. Além disso, tem os movimentos involuntários (discinesias) e dizem se sentir bem nesses momentos. Completando o quadro, desenvolvem sintomas de abstinência mediante a redução da dosagem ou suspensão da medicação.
Junto com a síndrome podem surgir manifestações neuropsiquiátricas intensas, incluindo estados alucinatórios, psicose ou distúrbios compulsivos. Esses pacientes podem começar com comportamentos exagerados e repetitivos, envolvendo uma hipersexualidade, compulsão para jogos - especialmente com apostas - e comportamento de consumo exacerbado na forma de compras ou de alimentos. Tais comportamentos são direcionados para a busca de recompensa emocional e não conseguem ser suprimidos pelo paciente. Há estudos que apontam para uma prevalência de até 13,7% desses sintomas ao longo da vida dos parkinsonianos.
Um comportamento curioso e relacionado a esses distúrbios impulsivos chama-se "punding" e não tem correspondência na lingua portuguesa. As pessoas acometidas por essa alteração demonstram comportamentos complexos repetitivos, excessivos e sem um propósito. Um exemplo típico é o de pacientes que ficam "arrumando" suas gavetas ou estantes de modo compulsivo. Costumam retirar os objetos e depois ter dificuldade em reorganizar tudo; todavia voltam com a mesma ação logo a seguir.
À parte de sintomas bizarros como os referidos, outros menos chocantes também aparecem e merecem o tempo do neurologista. Eles incluem os distúrbios de sono específicos, a depressão, a ansiedade, a perda de memória, as náuseas e as tonturas.
Cada vez mais reconhecemos que a magnitude da Doença de Parkinson ultrapassa, na maioria dos pacientes, as dimensões puramente motoras dessa patologia. O tratamento ótimo das pessoas portadoras deve ser voltado para o atendimento integral da saúde.

domingo, 8 de março de 2009

Ser humano é ser pessoa. Por quê viver se assim não for?

Muitos dilemas e polêmicas surgem quando se trata da vida humana, especialmente nos tempos atuais em que a duração da vida, por si mesma, já não é suficiente para se decidir quanto ao seu prolongamento ou não. Além da questão da quantidade, delimitada pelo tempo ou expectativa de vida, cabe também a pergunta sobre a qualidade de vida que se espera para alguém que se submete a um tratamento médico agressivo ou que se encontra com uma doença incurável. Inúmeros exemplos podem ilustrar o problema, entre eles os casos de doença de Alzheimer em seus estágios avançados, os cânceres terminais, os pacientes submetidos a suporte avançado à vida nas UTIs etc. Como abordar esses casos utilizando uma metodologia que identifique a pessoa no doente é a nossa proposta para ajudar nos difíceis momentos de decisão.
Qual o tempo que esperamos viver? Quando estamos preparados para a morte? A que condições somos capazes de nos submeter com a finalidade de permanecermos vivos? Se não temos essas respostas claras para nós mesmos, como podemos dispor da vida do outro e decidir o momento de parar?
Do ponto de vista da medicina, a idéia de vida modificou-se com o passar do tempo. Antes, quando o coração parava e a respiração cessava, ali findava o ciclo da vida. Mas com o surgimento das técnicas de ressuscitação cardiopulmonar, como massagem cardíaca, respiração artificial por ventilação mecânica e outras medidas intensivas, o limite foi transposto e nos tornamos capazes de prolongar quase indefinidamente as funções corpóreas.
Novos debates entre cientistas e a comunidade surgiram e observando-se o comportamento de certos pacientes que atingiam um ponto de irreversibilidade, emergiu o conceito de morte cerebral. Trata-se do ponto em que existe o dano cerebral completo e irremediável, com parada da circulação sanguínea intracraniana, cessação da atividade elétrica cerebral conforme detectada pelo eletroencefalograma e a morte das células cerebrais com a interrupção definitiva do metabolismo. Esse é o novo conceito de morte, o da morte encefálica, que permite inclusive o uso dos órgãos físicos, ainda mantidos por suporte artifical, para a realização de transplante.
Para satisfazer os critérios legais para o diagnóstico de morte encefálica, há uma série de procedimentos a serem seguidos: o paciente deve estar livre de condições que possam interferir no resultado dos testes (hipotermia, alterações do sódio, uso de sedativos ou anestésicos etc); dois médicos devem realizar os testes clínicos e constatar o mesmo resultado com pelo menos seis horas entre os exames; obter a confirmação de morte cerebral por meio de um dos métodos diagnósticos disponíveis como angiografia cerebral, EEG, doppler transcranianao, PET scan etc.
O diagnóstico de morte encefálica chama a atenção para o fato de que é o cérebro - e a mente - que caracteriza o estar vivo. Contudo, se esses critérios são suficientes e interessantes para os casos de morte prematura em um acidente automobilístico, por exemplo, eles ainda deixam dúvidas e incerteza em outras situações como o caso das demências e outras degenerações cerebrais.
Não pretendo aqui determinar o momento de parar os tratamentos; acho que essa é uma decisão da família devidamente esclarecida pelo médico. Mas gostaria de contribuir para o debate acerca da questão, especialmente porque vejo diariamente familiares desesperados e despreparados para o êxito letal de um idoso que já se encontra em estado quase vegetativo e identifico médicos dispostos a extender ao máximo a vida desses pacientes por questões que o decoro me impedem de externar.
Com o intuito de prover um instrumento legal para evitar a distanásia, o prolongamento do sofrimento no processo da morte, o Conselho Federal de Medicina publicou em 2006 a resolução 1805 que foi posteriormente derrubada por liminar judicial. Na ementa do texto dizia:
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
Apesar da suspensão por meios jurídicos da medida, o debate continua aceso e a prática mostra que muitas famílias pedem aos médicos que promovam apenas os cuidados paliativos aos seus entes queridos em fase terminal. Na minha opinião, nada melhor para alguém realizando seu passamento do que estar ao lado da família, em um ambiente acolhedor e longe de uma UTI.
Para contribuir com a discussão, gostaria de sugerir que pensássemos em termos do que é ser uma pessoa. Essa é a maior qualidade do ser humano e abrangente o suficiente para conter toda a variedade da vida, incluindo as condições de incapacidade física e mental. De algum modo, compreender o que é ser pessoa pode ser a maneira de distinguir entre a vida vegetativa própria da funções orgânicas e a vida de relação, base para o comportamento.
A palavra pessoa vem de persona, que significa máscara em latim. Também lhe é atribuída uma origem grega e se reportaria às máscaras utilizadas no teatro que continham uma abertura pela qual soava a voz (per sonare) e daí vem também a origem de personagem.
A idéia principal parece ser de que ser pessoa é ser personagem, é ter um papel social que se desempenha. Os vários papéis que desepenhamos consitituiriam nossa personalidade.
Gostaria de explorar aqui um pouco mais essa idéia e refletir sobre o que a idéia de máscara implica. Se temos um limite evidenciado por uma máscara é porque temos um lado de dentro, íntimo e privado - o nosso lado subjetivo e um lado de fora, público e visível, que nos permite a relação com o mundo objetivo e a partir do qual nos tornamos também objetificados - o nosso lado objetivo.
Na minha concepção, ser pessoa é ter a capacidade de intermediar o que passa pela máscara. É escolher o que fica dentro e o que fica fora. É estabelecer o gradiente que separa o que é subjetivo do que é objetivo. Ser humano é, em certa medida, não ser totalmente transparente. Dizem que a mentira é uma qualidade humana e acho que a dissimulação faz parte de nossas estratégias de sobrevivência social e uma maneira de preservar o que é íntimo quando isso parece muito dissonante do que se espera de nós. Sei que para alguns, a meta espiritual da vida é alcançar a transparência completa e estar em uma união não-dual com o universo, mas a decisão de trilhar esse caminho parte da pessoa dual.
Por um mecanismo curioso e intrínseco ao fato de sermos pessoas privadas que se relacionam socialmente por meio de máscaras ou papéis, somos também capazes de reconhecer quando estamos diante de outra pessoa. Podemos não saber tudo que se passa na mente do outro, mas sabemos com certeza que o outro é alguém como nós, um agente intencional que tem seu mundo interior inexpugnável.
Estamos todos adaptados ao esquema de relacionamento que se segue: sujeito --> sujeito objetificado pela máscara social --> mundo objetivo --> o outro objetificado por sua própria máscara --> o outro como sujeito.
Conforme nos relacionamos com outras pessoas, somos capazes de perceber quem elas são através dos caráteres transparentes e opacos de suas personas. Nossas experiências com essas pessoas formam um acervo de memórias que "salvamos" como a identidade do outro no nosso sistema mental.
O que proponho é estarmos atentos para a pessoa do outro, especialmente nos casos de doenças terminais como a demência de Alzheimer. Infelizmente, chega um momento em que a família olha para o doente e só consegue ver quem ele é através das memórias guardadas porque a pessoa foi se dissolvendo ao longo do processo degenerativo do cérebro e não está mais ali presente. Talvez seja essa a hora de começar a pensar em um tratamento mais piedoso e menos intervencionista.
A questão está longe de chegar a um consenso, mas acredito que quando se trata de doenças que prosseguem indefectivelmente para a degradação da pessoa, é preciso considerar muito mais do que a simples manutenção das funções orgânicas e entender que a qualidade de vida não é apenas a ausência de dor ou outros sofrimentos físicos.

quarta-feira, 4 de março de 2009

"O Escorpião e o Sapo" ou "A Competição no Trabalho"

A fábula sobre o escorpião e o sapo é bem conhecida, mas a mensagem transmitida é de que somos talhados para agir dessa ou daquela maneira em função de nossa própria constituição natural ou social. De acordo com a narrativa, não adianta lutar contra nossa própria natureza. Cabe, entretanto, a pergunta se realmente somos determinados pelo meio e até que ponto nos prejudicamos quando cedemos aos nossos impulsos.
A estória começa com uma inundação na qual o escorpião, inimigo natural do sapo, fica ilhado. Defrontando-se com a própria morte, o escorpião resolve pedir ajuda ao anfíbio que passa nadando à sua frente. "Estou ilhado e vou morrer, leve-me em suas costas até um local seguro", disse o artrópode venenoso.
Em resposta ao pedido, o sapo retruca dizendo que não queria ser ferrado mortalmente. Mas seu inimigo o convence apelando para sua compaixão e justificando que jamais feriria seu salvador porque, se assim o fizesse, morreriam os dois.
Cedendo ao pedido, enquanto levava o escorpião às suas costas no meio da travessia, sentiu o sapo uma ferroada e já desfalecendo olhou para seu carrasco e perguntou o porquê. "É minha natureza... ", responde o escorpião já se afogando também.
Na interpretação tradicional, nesse momento aprendemos a "valiosa lição" de que não é possível lutar contra nossa natureza. Na verdade, podemos até mesmo prever o comportamento dos outros se conhecermos sua natureza íntima. Afinal, uma macieira só pode dar maçãs e não se pode esperar que dê pêssegos ou melancias.
Será que é assim mesmo? Que não podemos lutar contra nossa "natureza" e estamos fadados a agir de maneira robotizada? Somos realmente predestinados e temos tudo já traçado por nosso karma?
Acredito que não.
Acontece que o ser humano não é restrito em seu comportamento do mesmo modo como a macieira que só sabe dar maçãs ou outras formas de vida menos complexas. Temos um poder de decisão e a capacidade de realizar escolhas. Ainda que não possamos falar em ação livre de qualquer determinação, sentimos que, em alguma medida, temos o que se chama livre-arbítrio.
De fato, a idéia de liberdade sugere que somos aptos a impor nossa vontade por sobre os ditames dos impulsos naturais. Não apenas isso, podemos ainda dizer que ter a capacidade de escolher se vamos concordar, negar, transformar, ignorar ou atender aos nossos instintos é a base para respondermos por nossos atos, ou seja, de termos responsabilidade.
Todos sabemos que nossos impulsos podem seguir, às vezes, na contramão da direção da razão e até se confrontar com os interesses do bem coletivo. Por isso temos as leis que regulam nosso comportamento e os sistemas punitivos em caso de desobediência. Contudo, as leis morais e sociais não existem apenas como proibição para certas condutas, mas também como afirmação da liberdade que temos até mesmo para transgredir e pagar a pena por isso.
Sabendo que não somos pré-destinados como o escorpião da anedota, fico pensando como a competição no ambiente de trabalho pode replicar a estória em seu lado mais nefasto. Muitas pessoas competem com seus colaboradores imaginando que precisam estar sobre as costas dos outros e não percebem que a cooperação é muito mais eficiente para a natureza humana que as estratégias de destruir o outro. O resultado da competição excessiva é que incapacitamos aqueles que deveriam estar lado a lado conosco, ajudando-nos a construir algo maior para o benefício coletivo. Mas como não suportamos ser apenas mais um, tornamo-nos escorpiões e garantimos o próprio naufrágio, desde que continuemos como os capitães do navio.
No mundo atual, se queremos sobreviver, precisamos reconhecer e, acima de tudo, valorizar as diferenças. Necessitamos dar espaço para que o outro compartilhe conosco suas habilidades e competências e devemos também dar algo em troca. A cooperação é a chave do sucesso ou talvez uma das metas que pessoas bem-sucedidas alcançam.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Tempo é cérebro

Tudo começou com o infarto do miocárdio. Descobriu-se que as artérias coronárias entupidas com coágulos desprendidos por placas de colesterol poderiam ser desobstruídas com uma medicação e que a área infartada podia ser parcialmente ou totalmente recuperada.Assim se iniciou uma nova era no tratamento das doenças cardiovasculares. Com o passar do tempo, as pesquisas mostraram que a desobstrução mecânica por meio de angioplastia seria mais eficaz e o procedimento se tornou padrão mundial.

Enquanto o músculo cardíaco infartado permanece viável por até seis horas depois de instalado bloqueio do fluxo sanguíneo, no caso do cérebro não ocorre o mesmo. Devido ao metabolismo cerebral, o entupimento das artérias leva a uma degeneração muito mais rápida do sistema nervoso, o que impediria a eficácia dos tratamentos de desobstrução do fluxo nos acidentes vasculares cerebrais.
Todavia, com os avanços da pesquisa internacional, foi possível verificar que selecionando adequadamente os pacientes e realizando o tratamento de trombólise (a palavra significa "dissolver o coágulo") em menos de 3 horas, seria possível diminuir a gravidade do AVCI - acidente vascular cerebral isquêmico - e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. A partir daí surgiu a noção de que "time is brain" ou em português: tempo é cérebro.
Para a execução do tratamento que visa desentupir a artéria cerebral obstruída por um coágulo, é preciso que o paciente chegue ao hospital o mais rápido possível, que o serviço médico esteja estruturada e capacitado para oferecer o tratamento e os profissionais treinados estejam disponíveis no local.
A medicação aprovada para a dissolução dos coágulos que causam o AVCI é denominada rTPA (ativador recombinante do plasminogênio tecidual) e pode ser administrada em até 3 horas por via endovenosa ou até 6 horas através de uma angiografia cerebral com um catéter que chega até a artéria acometida.
Quanto mais cedo o paciente chega no hospital e se inicia o protocolo de tratamento, maiores as chances de sucesso. Por isso, é importante que aqueles cujos familiares sejam idosos ou sejam portadores de problemas de colesterol, triglicérides, diabetes, hipertensão arterial, tabagismo ou etilismo estejam atentos para os primeiros sintomas da doença e procurem o socorro imediato.
Os sintomas mais frequentes são: perda de força ou de coordenação ou de sensibilidade em um lado do corpo (direito ou esquerdo); perda súbita da capacidade de falar ou de entender a linguagem; perda súbita da visão de um ou dois olhos; paralisia de metade do rosto; dor de cabeça súbita e intensa com ou sem qualquer um dos outros sintomas mencionados.
É preciso procurar o hospital mais próximo que tenha os protocolos de tratamento agudo do AVC e a estrutura para o atendimento do paciente. Em São Paulo, hospitais do serviço público de saúde como o Hospital das Clínicas da USP, o Hospital São Paulo da UNIFESP e o Hospital Santa Marcelina realizam o tratamento agudo do AVCI e têm grande experiência nesse tratamento de ponta. Entre os hospitais particulares, o Hospital Israelita Albert Einstein tem certificação internacional como "Stroke Center" e outros grandes hospitais como a Beneficência Portuguesa já se encontram aparelhados para a execução dos protocolos.
O acidente vascular cerebral é a maior causa de morte no Brasil e a terceira maior no mundo. O ideal é combater a doença controlando os fatores de risco modificáveis, como a pressão alta, a obesidade, o tabagismo etc, mas estar atento para o tratamento da fase aguda pode ser a diferença entre uma boa recuperação ou a manutenção de sequelas que comprometem a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.
Portanto, fiquem atentos e vida longa a todos!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Cultura de Paz: uma questão cognitiva

Ao conjunto de símbolos e valores elaborados por um povo em determinada época e lugar chamamos "cultura". Quando pensamos em "cultura de paz" estamos fazendo referência aos elementos presentes no imaginário coletivo que remontam aos valores pacíficos. Também queremos dizer que os elementos pacíficos devem sobrepujar, neutralizar ou até mesmo eliminar aqueles relacionados à guerra, à intolerância e a todas as formas de agressividade que podem estar presentes, evidentes ou disfarçadas, nas nossas atitudes, relacionamentos e escolhas cotidianas.
É no campo mental, onde habitam as representações do mundo e os esquemas que nos orientam o comportamento, que se encontra a chave para o surgimento de uma cultura de paz. Isso não significa desmerecer ou desconsiderar o coração, o sentimento. Na verdade, mente e coração formam um todo indissociável e são ambos responsáveis pela visão de mundo que construímos e nutrimos diariamente dentro de nós. Do mesmo modo, a expressão do campo mental-afetivo é nosso próprio corpo físico que também compõe a totalidade do ser pois somos o que somos, porque somos incorporados no mundo.
Do ponto de vista prático, percebemos que é possível modificar a sociedade transformando a nós mesmos. Não precisamos esperar uma mudança externa, na sociedade ou nos outros, para sermos capazes de identificar no mundo a possibilidade de uma existência pacífica. Não devemos apenas reagir aos estímulos externos, mas temos que antecipar e realizar de dentro para fora. As coisas não "são o que são"; mas nós escolhemos o que queremos que elas sejam. "Nós devemos ser a mudança que nós queremos ver", disse Mahatma Gandhi.
Assim, lutar por uma cultura de paz compreende erradicar (ou seja, arrancar desde a raíz) todos aqueles pensamentos, sentimentos, símbolos e valores que representam a violência dentro de nós. É preciso agir interiormente antes de agir exteriormente. É preciso mudar a base mental, o solo onde brotam nossas convicções e conceitos antes de cobrar do outro a postura de paz. Se continuarmos a apenas responder, reagir ao que vem de fora, jamais criaremos uma cultura pacífica, pois já estamos demais mergulhados em uma cultura de guerra. Além disso, como nossas ações são encadeadas com as dos outros, enquanto alguém não rompe o ciclo da violência, este se perpetua indefinidamente.
Imaginemos uma casa em que o pai chega estressado e briga com a mãe. Essa, por sua vez, perde a paciência com o filho mais velho que desconta no do meio. Sem meios para reagir contra o mais forte, o do meio vinga-se contra o menor que ataca o cachorro indefeso. Instalado o pandemônio em casa, o nível de tensão aumenta com as crianças gritando, o cachorro latindo, piorando o desentendimento entre os mais velhos e o ciclo se reinicia.
Penso que talvez se aplique aqui o significado profundo do "dar a outra face". Esse ato de não-violência é a condição sine qua non para a ruptura efetiva do ciclo de agressão. Dar a outra face não é apenas ser um cordeiro passivo, mas ser capaz de intencionalmente optar por não transmitir a violência para um terceiro ou de volta para o agressor. Ser capaz de absorver a ofensa sem se contaminar por ela. Ser capaz de assimilar o mal e purificá-lo dentro de si com vistas a um bem maior. É preciso agir pela paz para não perpetuar o ciclo violento.
Vê-se que não há passividade e, principalmente, não há uma mera reação por impulso. Podemos assumir tal compromisso interno e, lentamente, ir transformando nosso mundo e aquele à nossa volta. Podemos exercer essa prática em casa, nos relacionamentos profissionais - onde os subalternos são sempre as maiores vítimas por terem menor poder de reação - e em todos os lugares onde encontramos com outras pessoas.
Tudo depende dos símbolos e valores que alimentamos cotidianamente em nossa mente. Os sentimentos e ações surgem em decorrência ou em sintonia com eles.
Há muito mais a fazer do que o acima descrito, mas é um começo. Precisamos urgentemente, por exemplo, desconstruir a idéia oriunda da lógica de mercado de que tem valor aquilo que é raro e acessível a uns poucos. Basta escolhermos dar mais valor às coisas que representam o bem coletivo e não o bem individual.
De qualquer maneira, o caminho é longo e não temos tempo a perder. Não podemos adiar mais. Temos que dar o primeiro passo.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Quando o Analgésico é a Causa da Enxaqueca

A enxaqueca é uma doença bastante comum, assim como a possibilidade de acesso a medicamentos utilizados para o tratamento das crises. As medicações de prateleiras (over the counter - OTC) são aquelas para as quais não é necessária a prescrição ou receita médica para sua compra. O que poucos sabem é que o uso exagerado de sintomáticos para a dor de cabeça pode ser capaz de transformar as crises esporádicas de enxaqueca em uma dor de cabeça constante e incapacitante, denominada cefaléia induzida por medicação.

O termo "enxaqueca transformada" é freqentemente utilizado para descrever a cefaléia crônica diária que se iniciou como crises mais ou menos frequentes e que foi agravada pelo uso excessivos de analgésicos como os anti-inflamatórios, ácido acetil-salicílico, paracetamol, os derivados de ergotamina, os triptanos e os compostos específicos para enxaqueca, encontrados até mesmo fora dos estabelecimentos farmacêuticos.
A cefaléia crônica induzida por medicações atinge mulheres com maior frequencia que os homens e a faixa etária mais acometida está entre os 30 e 40 anos. Caracteristicamente são pessoas que eram portadoras de um tipo de cefaléia primária - não relacionada a lesões cerebrais - como a cefaléia tensional ou a migrânea, e que, por falta de um acompanhamento médico, passaram a utilizar analgésicos em frequencia maior que 3 vezes por semana até várias vezes ao dia, por mais de dois anos. Outro fenômeno que se observa é o uso do analgésico logo no primeiro sinal de dor ou mesmo diante da expectativa.
As características da dor também se modificam. Enquanto as crises de enxaqueca duram habitualmente menos de 48 horas, acometem metade do crânio e têm uma dor pulsátil acompanhada de náuseas ou vômitos, a cefaléia crônica diária é constante, tipo peso ou pressão, bilateral, é pior pela manhã e pode ter momentos de dores mais fortes.
Para o tratamento efetivo da cefaléia induzida por medicação é necessário mudar a compreensão do paciente sobre o problema. Deve-se entender que suas dores devem receber uma abordagem de tratamento "preventivo" e não apenas os sintomáticos que vinha fazendo uso. Para tanto, há várias drogas disponíveis para o uso de neurologista que atuam de modo a reajustar os limiares de dor no cérebro e evitar as dores, diminuindo sua frequencia, duração e intensidade.
A dificuldade do tratamento da cefaléia induzida por medicação é que a retirada dos remédios usados pelo paciente pode ser acompanhada de exacerbação da dor. No entanto, é imprescindível que a suspensão dos analgésicos seja feita e a experiência do neurologista nessa fase pode ajudar na obtenção do sucesso desejado.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Delirium em idosos: o papel da família


Em idosos internados para tratamento hospitalar é relativamente comum o aparecimento de um estado de confusão mental, denominado delirium agudo. Estudos recentes apontam para o tratamento não-medicamentoso como forma adequada para o controle e mesmo para prevenção desse problema que pode ocasionar o prolongamento das internações. Nesses casos, o papel da família é preponderante para o sucesso do tratamento.
O delirium agudo pode ser de dois tipos: o hipoativo, no qual predomina o rebaixamento do nível de consciência que varia de sonolência excessiva até o estupor e coma; e o hiperativo, caracterizado por agitação psicomotora, acompanhado ou não de alucinações visuais, auditivas, agressividade e outros distúrbios de comportamento. Habitualmente observa-se a mistura desses 2 tipos de sintomas, com flutuações da consciência ao longo do tempo, alternando períodos de sonolência, com outros de agitação e alucinações.
Os idosos, mesmo não sendo portadores de alzheimer ou outro tipo de demência, são particularmente suscetíveis a essas alterações de origem cerebral. Estudos mostram que indivíduos acima de 75 anos submetidos a uma cirurgia ortopédica tem chance de até 15% de desenvolver delírio agudo no período pós-operatório.
A causa do distúrbio é entendida, atualmente, como sendo uma conjunção de vários fatores de risco. Dentre eles podemos citar: idade maior que 75 anos; infecções; uso de antibióticos e outras medicações, tais como corticóides, sedativos e analgésicos(especialmente os derivados de morfina); cirurgias de médio ou grande porte; anestesia; insuficiência renal ou hepática; alterações da concentração de sódio, cálcio, magnésio e de outras substâncias encontradas normalmente no sangue. O acompanhamento de um especialista pode ajudar a detectar o problema, controlar os fatores de risco e auxiliar na prevenção dos sintomas.
Enquanto as pesquisas com uso de medicações antes de procedimentos cirúrgicos não se revelaram eficazes para evitar o delírio, a utilização de medidas não-farmacológicas se provou útil e desejável. Portanto, queremos dar alguns conselhos para os familiares de idosos que serão submetidos a uma internação por qualquer motivo.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a simples mudança de rotina e de instalação física pode gerar confusão mental e que os movimentos da enfermagem para medir pressão, pulso e temperatura, bem como aplicar medicações à noite, alteram o ciclo de sono-vigília e colaboram para a instalação do delirium. Assim, com o paciente internado, procure deixar o quarto bastante iluminado durante o dia, se possível sentando-o em uma poltrona e mantendo conversas sobre a família, a casa e também sobre os eventos mais recentes. À noite, manter o aposento à meia-luz, com o mínimo de barulho possível e, quando não houver problemas, evitar manipular o paciente da meia-noite às seis horas da manhã.
Raramente encontramos em uma acomodação hospitalar a presença de um calendário ou um relógio, talvez para diminuir a ansiedade de "não ver o tempo passar". Contudo, para uma boa orientação no tempo e no espaço, é importante ter a data visível - melhor que seja impressa diariamente no formato abaixo - e um relógio com o mostrador de tamanho suficiente para a leitura de quem está hospitalizado. Devemos compreender também que a duração da internação pode ser outro fator agravante, devido ao confinamento em ambiente fechado. Sempre que possível, passear com o paciente na cadeira de rodas pelos corredores do hospital ou outros locais apropriados para esse fim.


Nos momentos em que o paciente demonstra algum sinal de confusão mental, ou mesmo alucinação visual, é preciso confortá-lo, lembrando que está no hospital x, fazendo tratamento para y e que sua família o está amparando. Tranquilamente, é preciso também corrigir os distúrbios perceptivos, informando que o que ele viu não estava ali. Trazer objetos familiares ao paciente, para deixar no quarto também pode ser interessante no sentido de mantê-lo calmo.

Utilizando essas medidas, algumas vezes trabalhosas, é possível prevenir o delirium ou diminuir a necessidade de intervenção com medicamentos. Consequentemente, o tempo de internação hospitalar diminui e a recuperação em casa é mais rápida.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Clube da luta made in Brazil


Estava conversando com um garoto de 15 anos, pertencente à classe média e frequentador de uma boa escola particular em São Paulo. Ele me contava de uma "brincadeira" que seu grupo de amigos faz periodicamente. Chama-se brigar sem perder a amizade e consiste em rounds de luta de rua (street fight, como meu orgulhoso interlocutor enunciou) em que os adolescentes se atingem com socos, pontapés, chaves de braço, imobilizações e outros golpes, incluindo o famigerado "murro na cara". Os limites são apenas 2: em caso de sangramento a luta é interrompida e ninguém pode perder a amizade.
Evidentemente, em muitas ocasiões o ringue improvisado ora na casa de um, ora na casa de outro(longe dos pais), fica marcado com respingos de sangue, pedaços de dentes quebrados, algumas lágrimas e o eco das gargalhadas de humilhação coletiva contra os perdedores(o golpe final sobre quem já levou bastante).
Nessa brincadeira "inocente" valem muito os atos de submissão desonrosa, como imobilizar o oponente e dar tapinhas no rosto, temperando com um toque de sadismo o processo inteiro. Só não é permitido atingir as partes baixas, se bem que exista um certa condescendência para quem lança mão dessa tática se estiver apanhando muito.
Depois de tentar esconder meu horror, afinal sou ainda do tempo em que "não se bate na cara de um homem", procurei orientar o rapaz sem parecer muito quadrado. Uma atitude mais intempestiva poderia me valer a pecha de careta ou demodé, isso nos termos apropriados à minha geração.
Ficou, entretanto, a reflexão sobre os motivos desse tipo de comportamento.
Lançando mão dos conhecimentos de biologia, pensei ter encontrado na raiz animal do ser humano a causa do "clube da luta" tupiniquim. Especialmente para os mamíferos predadores, são comuns as brincadeiras de lutas entre adolescentes como forma de treinamento lúdico para a vida real que os aguarda. Também lembrando das matilhas e alcatéias, a eleição dos machos alfa acontece nas demonstrações de força. A preservação desse status social depende de resistir aos constantes desafios dos machos beta, hoje curiosamente em moda entre os humanos por serem mais sensíveis e carinhosos.
Por outro lado, escapando da explicação biológica, imagino se não estamos em um ponto da sociedade no qual o descrédito em relação à racionalidade(herdada como ideal humano das épocas iluministas), como forma de resolução de conflitos tenha chegado a um nível em que alguns homens passam a se sentirem mais homens exatamente quando são mais animais. Outras formas de primitivismo socialmente permitido poderiam ser os esportes - cada vez mais de contato físico - e as torcidas. A pressão da panela parece estar aumentando e se não contamos com a razão para diminuir o fogo que a alimenta, resta-nos soltar a válvula de escape constituída pelo atavismo irracional.
Pensando agora sob a perspectiva cultural, vivemos uma época de crise de identidade na qual a sensação de pertencimento a uma comunidade se dissolve no mar de homogeneidade da modernidade líquida, conforme Zygmunt Baumann. Diante da relativização de valores e da insustentabilidade ética, é preciso ter algo forte, capaz de impor algum relevo sobre um terreno que parece por demais igual, apesar de tanta diversidade. A construção desse ponto de significação densa, marco de orientação e eixo em volta do qual gira o mundo simbólico da identidade, pode ser a adesão a uma religião, como bem explica Mircea Eliade (em O Sagrado e o Profano), e ainda a constituição de grupos com regras muito próprias e rígidas, por mais que corrompidas na questão moral. Ou talvez esses fenômenos desafiem a lógica justamente pela necessidade de desafiá-la como forma de assegurar uma diferença no mundo, base para a constituição de uma comunidade.
O fato é que o ideal do belo, da harmonia e da realização do humano e de sua essência - que poderia até transcender a materialidade - parece cada vez mais distante e utópico. Não é à toa que o modelo de desenvolvimento econômico global cede ao capitalismo selvagem e nos lança na crise mundial que enfrentamos.
Isso é apenas a ponta do iceberg.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Fatos e Mitos sobre Epilepsia

Será que alguém ainda acredita que o contato com a baba de uma pessoa em convulsão pode transmitir a epilepsia? Provavelmente não. Mas ainda vejo aqueles que ao presenciarem uma crise epiléptica, incontinentes, tentam abrir a boca do pobre doente para evitar que venha a “engolir a língua”. Também há aqueles que seguram a pessoa para que ela não se debata muito... ou pior, os que fogem(fazendo o sinal da cruz) assustados com o grito ou a respiração estertorosa durante uma convulsão. Vamos então esclarecer alguns pontos importantes para desbastar o preconceito que envolve essa patologia e, talvez, estimular um pouco mais a solidariedade aos que passam por essa situação.
Por uma questão de objetividade, vou escrever no formato de FAQ e os que desejarem acrescentar comentários ou levantar mais perguntas, fiquem à vontade.


O que é a epilepsia?

É uma condição neurológica em que existem descargas anormais e excessivas das células nervosas – os neurônios. Quando essas descargas são muito intensas, podem acometer vários grupos de neurônios em uma área específica ou em todo o cérebro, ocasionando uma crise epiléptica que pode se manifestar de várias maneiras, desde uma convulsão até uma pequena ausência.
Como a epilepsia é considerada uma doença crônica, é preciso que haja várias crises identificadas por um médico, sem fatores precipitantes, para ser feito o diagnóstico. Isso é importante porque uma pessoa diabética pode ter uma convulsão se apresentar uma hipoglicemia, o mesmo pode acontecer com um etilista em abstinência, em situações de usos de drogas ou medicamentos etc. Nesses casos, quando a causa é removida, a pessoas deixa de ter crises. Algumas pessoas podem ter um única crise durante toda a vida e não são consideradas epilépticas.


Qual o problema de ter um “ameaço” de crise?

A rigor, não existe um ameaço de crise, o que acontece é uma crise mesmo.Existem vários tipos de crises epilépticas, mas a mais conhecida é a convulsão – crise tônico-clônica generalizada . Quando uma crise começa em uma região do cérebro, pode haver o que chamamos de crise parcial. De acordo com o local do córtex onde começam as descargas, surgem os sintomas. Por exemplo, se a crise parcial acomete a região frontal no ponto de controle do braço, o paciente sente movimentos involuntários naquele membro. Se essas descargas se distribuem por todo o córtex cerebral, a crise torna-se “generalizada”, a pessoa perde a consciência, fica rígida, se debate etc. Só que, na verdade, a crise começou mesmo no braço e se tivesse acabado ali mesmo, ainda seria uma crise e não apenas um ameaço.


Qual o objetivo e duração do tratamento?

O principal tratamento para epilepsia consiste no uso de medicamentos específicos, os chamados anti-epilépticos. O objetivo do tratamento é evitar completamente qualquer tipo de crise(inclusive os “ameaços”). Ficando o paciente ao menos dois anos sem crises, é possível tentar a retirada progressiva da medicação, sob os cuidados de um neurologista. Entre 40 e 60% dos pacientes ficam sem crises e sem remédios depois desse período. Caso voltem a surgir as crises, é preciso reintroduzir o tratamento e sua retirada posterior é menos provável. Em uma percentagem menor de indivíduos, mesmo com o uso concomitante de várias drogas, em doses altas, ainda subsistem as crises. Isso é o que chamamos de epilepsia de difícil controle. Felizmente, correspondem a uma minoria de pacientes.


O que fazer ao presenciar uma crise convulsiva?

Em primeiro lugar, é preciso deixar a pessoa solta e protegida de objetos que possam ocasionar lesões. Soltar a gravata ou qualquer coisa que possa prejudicar a respiração. Começar a contar o tempo em um relógio para determinar a duração da crise. Pode-se apoiar a cabeça, sem segurá-la. Quando os movimentos pararem, vire o paciente de lado, pois caso vomite não engasgará. Observe-o até que recupere a consciência. Se o período de rigidez ou de movimentos espasmódicos durar mais que cinco minutos – ou se houver duas crises sem recuperação da consciência entre as crises – é preciso levar o doente a um pronto-socorro mais próximo.
Ah! Não precisa tentar abrir a boca, puxar a língua ou algo parecido. O paciente não respira porque seus músculos torácicos estão contraídos. Ao afastar os dentes você pode se machucar ou ao paciente.


Se um epiléptico quiser beber álcool, deve parar as medicações naquele dia?

JAMAIS!!! Nunca, de modo algum! O álcool, por si mesmo, já pode precipitar uma crise convulsiva mesmo em quem não é epiléptico. A maior causa dos estados de crises prolongadas (estado de mal epiléptico) – que podem levar a danos cerebrais graves e irreversíveis – é a suspensão abrupta de medicação. Portanto, nunca deixe de tomar seus medicamentos, a não ser por orientação do seu neurologista. Outro cuidado: o uso de certos medicamentos podem afetar o nível dos anti-epilépticos no sangue, comprometendo sua eficácia.


O portador de epilepsia pode nadar ou andar de bicicleta?

Depende da gravidade de cada caso, do grau de controle das crises com as medicações e dos efeitos colaterais(como sonolência) que podem acarretar o seu uso. O médico que acompanha o paciente pode determinar os riscos para uma pessoa em particular. Via de regra, se o paciente está bem controlado, sem crises há pelo menos 3 a 6 meses, em uso regular de medicamentos, não há problema em nadar ou fazer outras atividades esportivas. Aconselha-se a natação sob a supervisão de um instrutor capacitado que estará atento para uma eventual crise na água. Deve-se evitar, contudo, esportes radicais, nadar em mar aberto, manuseio de máquinas pesadas ou exercer atividades que possam colocar outras pessoas em risco na eventualidade de uma convulsão.


A epilepsia é um problema espiritual?

Alguns grupos religiosos podem compreender as manifestações da epilepsia como sinais de um problema espiritual. Os espíritas kardecistas interpretam as crises como fruto da ação de obsessores desencarnados, alguns protestantes evangélicos podem entender a doença como decorrente da ação de demônios. Respeitamos essas opiniões e o desejo de muitos pacientes de receberem tratamentos espirituais para melhorar ou curar a patologia. Mas, gostaria de deixar um alerta: não deixem de tomar suas medicações por um ato de fé.
Quando você se curar pela intercessão de forças espirituais superiores, seu médico reconhecerá que você está livre do problema por tempo suficiente para suspender as medicações com segurança. Não importa que sua cura espiritual seja interpretada pelo doutor apenas como uma “remissão espontânea”. O perigo é jogar os remédios no altar do templo ou algo parecido, mediante o desafio de alguns líderes espirituais, e entrar em um estado de mal epiléptico que pode deixar seqüelas irremediáveis.

Deve haver muitas outras dúvidas e mitos em relação à epilepsia que merecem ainda esclarecimento. O importante é falar abertamente, sem preconceito ou restrições. Quanto à baba do epiléptico, não há qualquer problema em tocá-la, já que a doença não é transmissível. Já a solidariedade e o respeito podem ser contagiosos, se nos empenharmos nisso.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Proposta de um Blog em Neurologia

Saudações a todos!

Decidi começar um blog de neurologia no intuito de disponibilizar informações consistentes e seguras para pessoas portadoras de doenças neurológicas e seus familiares. Com o acesso estrondoso às informações possibilitado pela Internet, acho interessante ter alguém que filtre os assuntos e consolide os conteúdos, tornando-os acessíveis e úteis.
Vamos pensar de maneira científica para compreender o que é preciso filtrar.
Encontramos nos sinais e sintomas da doenças os fatos de interesse científico; no trabalho de pesquisa retira-se desses fatos os dados que permitem uma análise e compreensão dos fenômenos (à luz da ciência contemporânea); a partir daí temos informações que permitem as construções teóricas. Quando tudo isso é elaborado pela comunidade acadêmica e transformado em conhecimento aplicável, daí temos a prática profissional - da neurologia no nosso caso específico.
Como a produção científica é constante e em grande monta, além do imenso trabalho de lidar com os pacientes e utilizar os conhecimentos já estabelecidos mundialmente, precisamos estar atentos para os dados dos novos trabalhos, evitando conclusões precipitadas e acelerando para fornecer o que há de melhor na ciência ao consumidor final (o paciente).
Para o especialista - que vivencia a teoria e a prática da área profissional - já é uma tarefa hercúlea dar conta das contradições da neurologia e dos conflitos entre a indústria e o mercado de um lado e a qualidade de vida e a saúde dos pacientes de outro. Imagine para aquele que se encontra perturbado por uma doença e que busca, mais do que o conhecimento, uma resolução para seus problemas.
Por isso começamos esse blog.
Não faremos consultas pela internet, não indicaremos tratamentos, nem recomendaremos procedimentos que carecem de comprovação científica (e estou sempre atento para as limitações do método científico). O que pretendo é apresentar o que há de mais atual na neurologia clínica de uma maneira fácil de compreender e útil para aqueles que buscam o tratamento para suas condições.
Apesar de não me dispor a trata de questionamentos específicos(que devem ser feitos nos consultórios médicos), aceito sugestões de temas em neurologia para discussão.
Estando posto meu objetivo primeiro com esse blog, cabe agora dizer os efeitos colaterais que podem advir de sua escrita:
- teremos um maior contato com o público, o que me dará feedback sobre minha prática e talvez propicie alguns bons contatos;
- terei a possibilidade de resumir, re-elaborar e escrever sobre os artigos científicos que leio vorazmente e que são esquecidos com o tempo por falta de um registro metódico;
- pretendo ainda me manter alerta para a dimensão humana na questão das doenças e seus tratamentos, pois por mais que eu busque atentar para esse aspecto, somos compelidos no dia-a-dia a agir objetivamente, o que pode significar "objetificar" também as pessoas, inadvertidamente.
De antemão posso afirmar que, exceto pelo fato de ser um neurologista atuante na prática hospitalar e de consultório, não tenho nenhum conflito de interesse ao me referir a qualquer tratamento medicamentoso ou procedimento diagnóstico/terapêutico. Não recebo grants de nenhuma instituição famarcêutica, nem esse blog é patrocinado por qualquer outro senão eu mesmo.
Agora, mãos à obra!
Saúde e paz!